Vou dividir com vocês um texto do excelente jornalista da Folha de São Paulo, Hélio Schwartsman com o qual não concordo com 98% do texto, mas talvez eu faça parte dos que, segundo ele, padecem de dores físicas só ao pensar no caso…mas leiam o texto e façam suas ponderações…
Vendendo a Amazônia
Entre meus muitos defeitos não está o nacionalismo. Assim, não pestanejaria muito antes de vender a Amazônia aos gringos. Acho até que, dependendo de como a operação fosse montada, todos poderiam sair ganhando: a floresta e seus recursos seriam mais bem preservados, a população local experimentaria um novo ciclo de desenvolvimento (quem sabe até ganhasse passaporte americano ou da União Européia) e o resto do Brasil, evidentemente, receberia uma bolada pela cessão da “soberania”. Desnecessário dizer que o próprio planeta seria enormemente favorecido com o fim das queimadas e a manutenção da cobertura vegetal amazônica, que exerce importante papel na regulação do regime de chuvas e do clima em geral.
É claro, porém, que isso não vai acontecer. Nossos valorosos militares, secundados por grande parte da população (inclusive gente inteligente), padece de dores físicas só de considerar a hipótese de que a Amazônia possa não ser mais “nossa”.
É este “nosso” que eu gostaria de discutir um pouco hoje. Eu não sinto em absoluto que a Amazônia seja “minha”. Para começar, nunca pisei lá. OK, falha minha, mas acredito que eu seja acompanhado nela pela maioria dos brasileiros. Estou também convicto de que eu, como a maior parte da população do país, mais perco do que ganho com as queimadas promovidas por pecuaristas e sojicultores locais. Na verdade, sé é correta, como parece que é, a tese de que o carbono de origem antropogênica representa uma ameaça às gerações futuras, tenho razões legítimas para querer o fim deste verdadeiro holocausto vegetal, que, apenas entre agosto de 2007 e abril de 2008, já custou à floresta pelo menos 5.850 km2 de cobertura, o equivalente a quatro vezes a cidade de São Paulo.
Não estou, evidentemente, com essas minhas considerações, isentado estrangeiros de seu quinhão de culpa pelos percalços planetários. Afinal, no passado, eles destruíram suas florestas e, no presente, seguem emitindo quantidades absurdas de carbono por conta do uso irrefletido de carrões, os populares SUVs, e níveis pouco sustentáveis de consumo em geral.
Eles patinam até mesmo nas, por assim dizer, razões morais. Ao canadense ou finlandês que nos cobra pelas queimadas, podemos retorquir: –Ah é?! E o que vocês estão fazendo para impedir o derretimento do permafrost, que inunda a atmosfera com milhares de toneladas de carbono ao ano?
O ponto, porém, é outro. Quero frisar que, embora exista a possibilidade teórica de que internacionalizar a Amazônia seja uma solução boa para a maioria dos brasileiros (e dos terráqueos), não conseguimos nem ao menos discuti-la de forma serena, porque esse tal de nacionalismo já faz com que muitos de nós a etiquetem como “alta traição”.
O que, além das fronteiras geográficas internacionalmente reconhecidas –um mero marco legal–, torna a Amazônia “nossa”? Receio que só o que sobra seja esse sentimento meio bruto de que ela nos pertence porque pertence. É um conceito, por assim dizer, fora de lugar. Os mecanismos mentais que disparam o nacionalismo fazem sentido evolutivo na escala da aldeia, dimensão em que reforçam os vínculos e brios do grupo e o tornam mais apto a enfrentar e derrotar ameaças externas, como catástrofes naturais e tribos inimigas que queiram expulsá-los de sua terra.
No mundo moderno, entretanto, o nacionalismo tem servido mais para produzir guerras pouco razoáveis e muito mortíferas do que para cimentar de forma saudável o senso de comunidade. Em populações que se contam na casa dos milhões de habitantes dispersos por áreas às vezes continentais, a melhor forma de despertar a cumplicidade belicosa característica do nacionalismo é recorrer a bandeiras abstratas e artificiosas. Tomemos o recente caso de Kosovo, que opôs sérvios a albaneses. Embora a maioria do habitantes dessa região da antiga Iugoslávia seja de origem albanesa, o território é considerado berço nacional da Sérvia. Foi ali que, em 1389, eslavos cristãos liderados pelos sérvios enfrentaram a invasão otomana. Perderam, mas o local segue sendo considerado vital para a “alma da Sérvia como nação”. Por menos razoável que pareça, boa parte dos sérvios prefere sujeitar-se a bombardeios e sanções por parte do Ocidente a desistir desse pedaço de terra miserável e integrar a rica UE.
Há vários outros filmes parecidos. O final nunca é bom. Uma lista curta, restrita às últimas décadas, inclui a patacoada argentina em torno das Malvinas (1982), a Guerra do Futebol, travada entre El Salvador em Honduras em 1969, por causa de uma partida de ludopédio e um contencioso em torno de imigração, e a famosíssima Guerra da Salsinha, que já tive oportunidade de comentar aqui.
É por conta dessas palhaçadas e de muitas outras, por vezes com conseqüências ainda mais trágicas, que sinto um frio na espinha só de ouvir palavras de ordem como “A Amazônia é nossa”. Por certo que é, mas e daí? Estamos fazendo um bom trabalho com ela? Não seria melhor vender de uma vez? Se isso fere muitas suscetibilidades, por que não alugá-la para que seja preservada e deixe todas as partes satisfeitas?
O maior drama do homem contemporâneo é que, embora vivamos em sociedades pós-industriais de alta tecnologia e populações absurdamente grandes, permanecemos equipados com uma estrutura psíquica que nos faz raciocinar na escala da aldeia. Por mais globalizada que tenham ficado nossas metrópoles, ainda vemos o estrangeiro como uma ameaça. O nacionalismo e o racismo daí derivados não são as únicas chagas decorrentes do descompasso entre o mundo como ele está e a nossa forma de percebê-lo. Outro exemplo vem da economia. Por mais sofisticado que se tenha tornado o mercado financeiro, ainda consideramos os juros uma imoralidade, e o intermediário, um sanguessuga. Algo dentro de nós diz que não é justo ganhar dinheiro sem “fazer nada”. Não nos ocorre que o valor do dinheiro varia dependendo de quem precisa dele nem que disponibilizar bens é uma forma de agregar valor.
O mesmo vale para o campo dos costumes. Por menos razoáveis que sejam, não conseguimos no livrar de certos tabus sexuais e sociais que, sem acrescentar muito, relegam milhões de humanos à marginalidade. Também ainda não fomos capazes de superar a idéia inverossímil de que fomos criados por uma espécie de papai do céu de moral severa a quem devemos obediência total.